terça-feira, 10 de junho de 2008
Edigar Mão Branca - Programa Som Brasil
Edigar Mão Branca é um legítimo representante da cultura sertaneja
quinta-feira, 29 de maio de 2008
Nina Simone: música e política
A tendência natural do homem de classificar seres e coisas sempre existiu. É bem mais simples lidar com a idéia de agrupamento, quando os rótulos determinam perfis e condutas. O problema é quando algo foge do previsto. Ou quando é múltiplo, ou seja, inclassificável. Assim é Nina Simone, no mínimo difícil de se definir. Você deve ter ouvido dizer que seu estilo é jazz. Sim, mas também é soul, blues, gospel, folk, pop e tantas outras variações que só mesmo uma artista como ela poderia desenvolver. Não se trata apenas de mais uma bela voz – belíssima, por sinal. É toda uma conduta e um posicionamento diante da vida que a tornam uma mulher tão especial.
Se hoje a situação para a comunidade negra norte-americana não é das mais fáceis, imagine no início do século vinte. Nina Simone, que veio ao mundo como Eunice Kathleen Waymon, nasceu em 1933, período em que a questão racial ainda não era discutida abertamente, só sentida. Portanto, a segregação era ostensiva e os negros não possuíam voz ativa, apenas sentiam o peso da opressão. Imagine o impacto causado por uma garota negra e pobre fazendo parte da conceituada e conservadora Juilliard School of Music, de Nova York. Em plenos anos 50 Nina tornou-se uma das primeiras mulheres negras a estudar piano na instituição. Foi apenas uma das barreira a serem vencidas.
A carreira da musicista estaria praticamente definida, com o talento nato e um início promissor. Eu disse estaria, porque o destino de Nina previa outros caminhos. Além de trabalhar como acompanhante, conseguiu outro emprego como cantora num bar em Atlantic City. Era o momento de Eunice Waymon dar lugar a Nina Simone, em homenagem a atriz francesa Simone Signoret. Ela nem imaginava o que estava por vir.
O sucesso na noite rendeu a gravação de um álbum no final dos anos 50. Uma canção em especial tornou-se hit, “I Loves You, Porgy”, da ópera "Porgy and Bess", de George Gershwin. Ficou de cara no vigésimo lugar das paradas, um dos poucos da sua carreira. Os anos 60 foram tempos férteis para o nosso alvo. Contratada pela gravadora Phillips, gravou de tudo um pouco, de canções francesas a israelenses, ao jazz de Duke Ellington. Deu seu toque em hits como "Don't Let Me Be Misunderstood” e "I Put a Spell on You", que por sinal, influenciou os Beatles no vocal de Michelle. Após algumas mudanças de gravadora, já na década de 70, Nina se separa do seu marido e empresário e resolve dar uma guinada geral.
Cansada da peleja do preconceito racial e com o show business, começa uma vida meio cigana. Mesmo com problemas financeiros, mudou-se para Barbados e depois para Libéria, na África, Suíça, França e Inglaterra. Continuou produzindo e compondo, porém sem que os holofotes a alcançassem. Graças a um comercial de perfume Channel, na década de 80, Nina praticamente ressurge, com a canção "My Baby Just Cares for Me", hit instantâneo. Daí em diante, seu talento voltou a ser reconhecido e gravou com Deus e todo mundo. Dividiu palcos e estúdios como Pete Townsend, ex- The Who, Miriam Makeba, Maria Bethânia, veio 6 vezes ao Brasil, fez trilha para cinema e muito mais. Virou estrela em 2003 aos 70 anos de idade, de causas naturais, em sua casa no sul da França.
O ativismo político esteve presente em todos os trabalhos de Nina Simone. Sua luta pelos direitos civis dos negros foi intensa a ponto de faze-la deixar a terra natal, os Estados Unidos, por discordar da situação. Uma das canções mais marcantes nesse sentido foi Mississippi Goddam. A letra dura fala do não menos leve episódio do atentado à bomba em uma igreja batista no Alabama, causando a morte de 4 meninas negras. Era época do terror da Ku Klux Klan. Sobre a morte do líder Martin Luther King, escreveu “Why? The King of Love is Dead” ou “Por que o rei do amor está morto” e vários outros temas. Sua vida foi retratada na biografia I Put A Spell On You e em breve ganhará as telas de cinema. A escolha da atriz principal parece ter sido acertada, com cantora Mary J. Blige. Além de ser uma artista acima de qualquer suspeita, tem outras semelhanças com Nina Simone, como fato de ser também empresariada pelo marido e de defender os direitos civis.
*DOSSIÊ NINA SIMONE
Produção: Cássia Magalhães
Apresentação: Michelle Bruck
sexta-feira, 23 de maio de 2008
Mart'nália: swingue do samba
É preciso mais que talento para, em alguns anos de carreira, reunir sobre si o respeito e o entusiasmo de nomes como Martinho da Vila, Caetano Veloso e Maria Bethânia. É preciso mais que nome para, a cada trabalho, fazer surgir como clássicos novas canções e compositores, e ao mesmo tempo prestar reverência originalíssima aos mestres do samba e afins, dentro da generosa árvore genealógica musical brasileira.
terça-feira, 20 de maio de 2008
Tracy Chapman - "fest car"
Tracy Chapman (Cleveland, Ohio, 30 de março de 1964) é uma cantora uranista de música pop, rhythm-and-blues jazz soul norte-americana, vencedora por diversas vezes do Grammy, tornada mundialmente famosa por suas canções "Baby Can I Hold You", "Fast car" e "Bang bang bang"
Guitarrista e compositora desde criança, ingressou no programa "A Better Chance", voltado a identificar nacionalmente crianças negras talentosas para o desenvolvimento acadêmico, o que lhe permitiu freqüentar a Wooster School, em Connecticut e posteriormente a Tufts University, em Medford (Massachussets).
Em maio de 2004, a Tufts University concedeu-lhe o título de doutora honoris causa em Belas-artes, por sua contribuição como uma artista socialmente engajada e por suas realizações artísticas.
Ainda durante a faculdade, Chapman começou a apresentar-se nas ruas, tocando seu violão em cafés de Cambridge, Massachussets. Enquanto esperava sua graduação acadêmica, assinou contrato com a SBK Records, em 1988, lançando seu primeiro álbum, intitulado "Tracy Chapman" - que foi logo aclamado pela crítica, e ela passou a realizar tournês e conquistar o público. Após sua aparição num programa de TV, em homenagem aos setenta anos de Nelson Mandela, em junho, sua música "Fast Car" alcançou o topo das paradas nos Estados Unidos, ficando entre as 10 mais executadas da lista da Billboard Hot 100, enquanto outras faixas também ficavam entre as mais ouvidas, "Baby Can I Hold You" entre estas.
O disco vendeu bem, alcançando vários certificados de vendagem da RIAA (discos de platina), e fazendo-a vencer no ano seguinte (1989) quatro Grammy Awards, inclusive a de melhor artista revelação.
Chapman tornou-se, depois disto, uma artista ligada à Anistia Internacional, participando da tour "Human Rights Now!". Segundo algumas fontes, Chapman tornou-se uma das mais influentes artistas no meio universitário norte-americano, nos anos 80.
Seu álbum seguinte, Crossroads (1989), não teve o mesmo sucesso comercial. Em 1992, quando lançou seu trabalho seguinte - Matters of the Heart - seu público era restrito a fãs dedicados. Apesar de todos acreditarem ter encerrado sua carreira, surpreendeu os analistas em 1995, com New Beginning, que vendeu mais de 3 milhões de cópias apenas nos EUA, e rendeu-lhe um Grammy, em 1997, de melhor canção de rock.
Em 2000 Telling Stories foi um álbum com músicas mais voltadas para o rock que para o estilo pop, que até ali seguia. A música-título do disco foi bastante executada nas rádios européias, e em alguns segmentos norte-americanos. O sexto álbum foi Let It Rain, de 2002, que Chapman divulgou em tournê pela Europa e EUA em 2003.
Where You Live, sétimo álbum da cantora, foi lançado em setembro de 2005. Com este trabalho realiza excursões pelos EUA e Europa.
segunda-feira, 19 de maio de 2008
120 anos de abolição: o que se passou?
O que passou? Apenas o tempo, mas as condições de vida para a etnia negra e afrodescendente pouco ou quase nada mudaram na vida da maioria desta população!
O que ficou? Uma grande repetição exploradora e muitas lições a serem aprendidas por toda a nação!
O que se realizou? Nem todos os sonhos desejados se realizaram, contudo a esperança e a bravura nunca perderam o seu espaço na luta intensa dos anônimos/as da população negra desta terra!
O que se aprendeu? Nunca houve qualquer concessão, só após as lutas houve conquistas e que na comunidade não se perde a identidade!
O que este povo nunca esqueceu? O valor da experiência coletiva e comunitária, pois sempre que se individualizou sofreu o mau agouro da solidão e da exploração e que a consciência não é mágica, mas que deve ser ensinada e aprendida a cada dia do nascer ao por do sol!
O que se viu? Tristes histórias que se sucedeu em diferentes lugares do país, mas também o heroísmo anônimo que quebraram correntes e prisões incomensuráveis!
Quem ficou? Heróis pouco conhecidos, mas com a bravura de serem tão importantes que nem o silêncio, nem a omissão arquitetada durante séculos conseguiram extingui-los! Valeu Zumbi!
Onde ficou? Nas ruas calçadas das cidades coloniais, nas construções de paredes largas de dezenas de cidades históricas em todo este país, na força do trabalho negado, na riqueza que foi apropriada nas mãos da elite, na ausência política, sócio-econômica e educacional que hoje clama por justiça e dignidade!
Qual ritmo dançou? Dançou a musicalidade de todos os sons, pois a arte do movimento, da ginga, do passo e do compasso, da harmonia sempre foi ouvida com sensibilidade desde a época dos primeiros e mais sábios ancestrais da África e o contato com a madeira, com o couro, com os metais é musical!
Que alimentos comeu? Não só comeu, como também ensinou a comer a força das plantas, das raízes, das folhas, das carnes, dos cozidos e assados que a natureza graciosamente oferece!
Que fé cultuou? A força do AXÉ! Que conta a história sensível e profunda de como que a espiritualidade perpassa a todas as coisas das mais simples às mais complexas e que a relação entre cada ser vivo e o coletivo é belo e precisa ser respeitada, nos seus ciclos e manifestações!
Por que 120 anos em doze perguntas? Porque a matemática é simples, precisa e pode ser sempre multiplicada por 10 (dez), representando assim cada questão a proporção de uma década, mas que inspira o desejo de um novo movimento onde não se necessite esperar outros 120 anos para que tenhamos mais vida, mais igualdade sócio-econômica, mais respeito, mais escolaridade, mais cidadania. Queremos um tempo breve para que todos vivam como gente!
Professor Uene José Gomes- CEAB/UCG
O que ficou? Uma grande repetição exploradora e muitas lições a serem aprendidas por toda a nação!
O que se realizou? Nem todos os sonhos desejados se realizaram, contudo a esperança e a bravura nunca perderam o seu espaço na luta intensa dos anônimos/as da população negra desta terra!
O que se aprendeu? Nunca houve qualquer concessão, só após as lutas houve conquistas e que na comunidade não se perde a identidade!
O que este povo nunca esqueceu? O valor da experiência coletiva e comunitária, pois sempre que se individualizou sofreu o mau agouro da solidão e da exploração e que a consciência não é mágica, mas que deve ser ensinada e aprendida a cada dia do nascer ao por do sol!
O que se viu? Tristes histórias que se sucedeu em diferentes lugares do país, mas também o heroísmo anônimo que quebraram correntes e prisões incomensuráveis!
Quem ficou? Heróis pouco conhecidos, mas com a bravura de serem tão importantes que nem o silêncio, nem a omissão arquitetada durante séculos conseguiram extingui-los! Valeu Zumbi!
Onde ficou? Nas ruas calçadas das cidades coloniais, nas construções de paredes largas de dezenas de cidades históricas em todo este país, na força do trabalho negado, na riqueza que foi apropriada nas mãos da elite, na ausência política, sócio-econômica e educacional que hoje clama por justiça e dignidade!
Qual ritmo dançou? Dançou a musicalidade de todos os sons, pois a arte do movimento, da ginga, do passo e do compasso, da harmonia sempre foi ouvida com sensibilidade desde a época dos primeiros e mais sábios ancestrais da África e o contato com a madeira, com o couro, com os metais é musical!
Que alimentos comeu? Não só comeu, como também ensinou a comer a força das plantas, das raízes, das folhas, das carnes, dos cozidos e assados que a natureza graciosamente oferece!
Que fé cultuou? A força do AXÉ! Que conta a história sensível e profunda de como que a espiritualidade perpassa a todas as coisas das mais simples às mais complexas e que a relação entre cada ser vivo e o coletivo é belo e precisa ser respeitada, nos seus ciclos e manifestações!
Por que 120 anos em doze perguntas? Porque a matemática é simples, precisa e pode ser sempre multiplicada por 10 (dez), representando assim cada questão a proporção de uma década, mas que inspira o desejo de um novo movimento onde não se necessite esperar outros 120 anos para que tenhamos mais vida, mais igualdade sócio-econômica, mais respeito, mais escolaridade, mais cidadania. Queremos um tempo breve para que todos vivam como gente!
Professor Uene José Gomes- CEAB/UCG
O arquiteto de pesadelos
Há quinze dias. Quinze. Religiosamente, sucessivamente, dolorosamente, sonho com a morte. Não com a morte exatamente, a velha com a foice e enxada; mas com o espírito da morte, ou tudo aquilo que compõe o cenário da morte. Rigorosamente. Quinze dias, sem falha de um sequer. Quinze: cemitérios, cortejos fúnebres, covas, catacumbas, defuntos, procissões, enterros, lamentos, choros, carpideiras, cemitérios, defuntos, cortejos, catacumbas... Quinze dias de sonhos.
Eles vêm em capítulos, mas a fotografia é a mesma; é o mesmo diretor, o mesmo fundo musical: um silêncio a la Peter Gast; é sempre o mesmo roteiro inacabado. No último episódio, uma amiga me conduzia numa bicicleta cargueira pelas ruas de uma cidade estranha cujo colorido transitava entre a “Lista de Schindler” e “A Vida é Bela”; imensos portões de ferros abrigam estátuas antigas, de olhares vagos e semblantes monótonos. Um cortejo fúnebre invade a rua de asfalto úmido e vozes vestidas de branco entoam um cântico de lamento profundo: e um solitário camelo o esquife conduz. A morte parece-me, neste sonho em particular, muito mais trágica que nos episódios anteriores, pois que os que conduzem o morto são também almas depenadas, mas vivas; são espelhos de gente, tatuagens de vida; os lamentos são mais uma auto-piedade que saudade do morto verdadeiro; inadvertidamente, a cargueira avança sobre a procissão das almas e nós – em cujos semblantes pairam ares de zombaria e desprezo – estamos cara a cara com o defunto. Eu e a amiga Cláudia estamos despertos daquela dor, mas o ambiente é de uma atmosfera pesada e nossos corpos parecem ser impelidos a abandonar o local, que não nos pertence.
Em outro episódio, estou acompanhado de duas pessoas que me guiam ao cemitério localizado na praça Tancredo Neves, onde as cruzes são pequenas e as covas, devidamente cobertas pela vegetação, sem ondulações no terreno, sem sinais. Indago ao cicerone por que três nomes na mesma cova e o sujeito-obscuro esclarece que os dois primeiros foram retirados para dar lugar ao meu pai. Não me estranha o fato. Vislumbro sem qualquer sentimento as demais covas, que adivinho existirem, pois que não visíveis, e saio andando pelas avenidas da cidade. Não há fundo musical, nem sentimento de dor, nem riscos. Apenas a informação. Sei que ali, na praça Tancredo Neves, há mortos de todas as origens que se sucedem no terreno, abrigando-se nos abrigos uns dos outros, uma irmandade de mortos saudáveis.
Em certo sonho – confesso – doeu-me não encontrar o caminho da cidade. O sentimento de aventura deu lugar ao desespero. Amigos-obscuros, mas amigos, seguiam-se numa jornada composta de risos histéricos, típicos de dores inconfessáveis. A mim não me restava dúvidas quanto ao rumo da cidade, mas por sobre as catacumbas de um cemitério imenso o céu parecia maior; eram tumbas imensas, cimentadas de cima a baixo, sem quaisquer inscrições de nomes ou datas; cada uma parecia comportar famílias inteiras, de épocas distantíssimas, muito distantes; foi neste capítulo que achei a saída: Vitória da Conquista era vislumbrada numa distância magnífica, mas o fato de poder vê-la dera-me alento inédito e Drummond erguia das trevas seu canto doido, “não cantes a tua cidade”; senti-me encorajado a permanecer com os obscuros nos jardins dos mortos, podendo enxergar a cidade na distância descomunal, mas tão próxima e tão quente, e tão pálida, e tão fria...
O xadrez fez-me companhia neste que foi o episódio mais hilário e amedrontador, pois que o defunto, esquartejado, tinha os grandes olhos abertos sobre mim e esboçava uma verdade que teimava em não abandonar seus lábios roxos. O Cemitério da Saudade e sua capela estavam vazios quando entrei; um minuto depois estavam agrupadas inúmeras pessoas que choravam e riam enquanto lembravam as aventuras de um morto que não pude ver. À medida que eu tentava escapar da bestialidade, o ambiente se tornava ainda mais insuportável, uma zombaria irritante; doía-me principalmente a impotência de meu corpo e a indiferença dos demais. Uma indiferença cínica, uma indiferença mal-intencionada, que parecia querer dizer algo sobre mim; o som dos risos impregnaram as paredes cinzas e as vozes e os choros emanavam das paredes e dos tetos; tudo ali era desespero e riso e um morto que não tinha corpo, que não existia, num ritual macabro de histeria coletiva.
Ontem, ao dormir, fiz questão de projetar as imagens que queria ver nos sonhos; arquitetei meu pesadelo. Mas acordei suando frio. Fui ao banheiro lavar o rosto numa água gélida e, aos poucos, vieram-me à mente as imagens do sonho: eram cemitérios de andares, prédios que abrigavam mortos que falavam entre si numa linguagem inatingível. Aos poucos, a mente abria janelas e os sonhos iam clarificando o juízo. Eram quatro e quarenta da manhã; olhei pela janela da rua e uma densa neblina cobria a serra do periperi; no meu bicama, sentado, ouvi uma meia hora de Mozart e voltei à cama. Adormeço e retomo o mesmo sonho na mesma cena onde havia acordado; um sentimento de vazio pleno abocanhou-me: as vozes sumiram e o cinza-morto das paredes era amedrontador. Cemitérios gigantescos de andares, ruas desertas e um desejo de ser éter. Luzes mortas, céu escuro – embora dia – e ausência completa de vida humana.
Eles vêm em capítulos, mas a fotografia é a mesma; é o mesmo diretor, o mesmo fundo musical: um silêncio a la Peter Gast; é sempre o mesmo roteiro inacabado. No último episódio, uma amiga me conduzia numa bicicleta cargueira pelas ruas de uma cidade estranha cujo colorido transitava entre a “Lista de Schindler” e “A Vida é Bela”; imensos portões de ferros abrigam estátuas antigas, de olhares vagos e semblantes monótonos. Um cortejo fúnebre invade a rua de asfalto úmido e vozes vestidas de branco entoam um cântico de lamento profundo: e um solitário camelo o esquife conduz. A morte parece-me, neste sonho em particular, muito mais trágica que nos episódios anteriores, pois que os que conduzem o morto são também almas depenadas, mas vivas; são espelhos de gente, tatuagens de vida; os lamentos são mais uma auto-piedade que saudade do morto verdadeiro; inadvertidamente, a cargueira avança sobre a procissão das almas e nós – em cujos semblantes pairam ares de zombaria e desprezo – estamos cara a cara com o defunto. Eu e a amiga Cláudia estamos despertos daquela dor, mas o ambiente é de uma atmosfera pesada e nossos corpos parecem ser impelidos a abandonar o local, que não nos pertence.
Em outro episódio, estou acompanhado de duas pessoas que me guiam ao cemitério localizado na praça Tancredo Neves, onde as cruzes são pequenas e as covas, devidamente cobertas pela vegetação, sem ondulações no terreno, sem sinais. Indago ao cicerone por que três nomes na mesma cova e o sujeito-obscuro esclarece que os dois primeiros foram retirados para dar lugar ao meu pai. Não me estranha o fato. Vislumbro sem qualquer sentimento as demais covas, que adivinho existirem, pois que não visíveis, e saio andando pelas avenidas da cidade. Não há fundo musical, nem sentimento de dor, nem riscos. Apenas a informação. Sei que ali, na praça Tancredo Neves, há mortos de todas as origens que se sucedem no terreno, abrigando-se nos abrigos uns dos outros, uma irmandade de mortos saudáveis.
Em certo sonho – confesso – doeu-me não encontrar o caminho da cidade. O sentimento de aventura deu lugar ao desespero. Amigos-obscuros, mas amigos, seguiam-se numa jornada composta de risos histéricos, típicos de dores inconfessáveis. A mim não me restava dúvidas quanto ao rumo da cidade, mas por sobre as catacumbas de um cemitério imenso o céu parecia maior; eram tumbas imensas, cimentadas de cima a baixo, sem quaisquer inscrições de nomes ou datas; cada uma parecia comportar famílias inteiras, de épocas distantíssimas, muito distantes; foi neste capítulo que achei a saída: Vitória da Conquista era vislumbrada numa distância magnífica, mas o fato de poder vê-la dera-me alento inédito e Drummond erguia das trevas seu canto doido, “não cantes a tua cidade”; senti-me encorajado a permanecer com os obscuros nos jardins dos mortos, podendo enxergar a cidade na distância descomunal, mas tão próxima e tão quente, e tão pálida, e tão fria...
O xadrez fez-me companhia neste que foi o episódio mais hilário e amedrontador, pois que o defunto, esquartejado, tinha os grandes olhos abertos sobre mim e esboçava uma verdade que teimava em não abandonar seus lábios roxos. O Cemitério da Saudade e sua capela estavam vazios quando entrei; um minuto depois estavam agrupadas inúmeras pessoas que choravam e riam enquanto lembravam as aventuras de um morto que não pude ver. À medida que eu tentava escapar da bestialidade, o ambiente se tornava ainda mais insuportável, uma zombaria irritante; doía-me principalmente a impotência de meu corpo e a indiferença dos demais. Uma indiferença cínica, uma indiferença mal-intencionada, que parecia querer dizer algo sobre mim; o som dos risos impregnaram as paredes cinzas e as vozes e os choros emanavam das paredes e dos tetos; tudo ali era desespero e riso e um morto que não tinha corpo, que não existia, num ritual macabro de histeria coletiva.
Ontem, ao dormir, fiz questão de projetar as imagens que queria ver nos sonhos; arquitetei meu pesadelo. Mas acordei suando frio. Fui ao banheiro lavar o rosto numa água gélida e, aos poucos, vieram-me à mente as imagens do sonho: eram cemitérios de andares, prédios que abrigavam mortos que falavam entre si numa linguagem inatingível. Aos poucos, a mente abria janelas e os sonhos iam clarificando o juízo. Eram quatro e quarenta da manhã; olhei pela janela da rua e uma densa neblina cobria a serra do periperi; no meu bicama, sentado, ouvi uma meia hora de Mozart e voltei à cama. Adormeço e retomo o mesmo sonho na mesma cena onde havia acordado; um sentimento de vazio pleno abocanhou-me: as vozes sumiram e o cinza-morto das paredes era amedrontador. Cemitérios gigantescos de andares, ruas desertas e um desejo de ser éter. Luzes mortas, céu escuro – embora dia – e ausência completa de vida humana.
CRÔNICA: “Vou morrer”
Por Luiz Cláudio Sena (foto)
Vou morrer. Aos poucos, a idéia da morte vai se acomodando. Aos poucos, saber-me efêmero vai se transformando numa constatação indolor. Aos poucos, por uma certa aproximação – cumplicidade ou co-gestão – com o processo criativo universal (ok, chamai-o de Deus), meio que vou me convencendo de que também eu estou submetido à grande regra: fenecer.
Vou morrer. Olho para trás e vejo que as múltiplas, diversas e complexas perguntas feitas a mim mesmo e ao mundo ao meu redor começam a ser respondidas, não pela leitura dos filósofos, não pelo estudo da cultura oriental e de sua religião, não pela meditação, mas por mim mesmo, inconscientemente. Aos poucos, ao invés de obter respostas, subtraio perguntas. Aos poucos, toda a inquietação se transforma numa confluência, coesão com o todo. Aos poucos, a Verdade, que busquei, me busca.
Aos poucos, a resposta, tantas vezes escorregadia, enrosca-se em meu pescoço, cachecol em linha de tricô.
Vou morrer. E me irmano com meus ídolos. Dentro em breve – para a história, o que são 100 anos? – dentro em breve estarei com Ele. Mas Ele já está comigo. Dentro em breve, deixo de ser protagonista, exclusivista, egoísta, narcisista, para ser tudo, todos, total. Dentro em breve, esta sensação de agora – nirvana é a sensação – vai consumir-me todo, vai envolver-me todo, e todo me fará viver.
Vou morrer. E só agora, quando deixo de lado toda a seriedade, é que vejo o quanto essa brincadeira é séria. Só agora, pleno, posso revoltar-me, encolerizar-me, reivindicar, gritar, humanizando-me, emocionando-me, permitindo-me, ignorando-me. Só agora, “onde vês eu não vislumbro razão”.
Vou morrer. E já formulo – data vênia, Senhor Deus – uma revisão no modelo operacional em uso no universo. Algumas leis universais merecem ajustes, adendos, emendas. Talvez burocratize um pouco, mas alguns ritos podem ser sistematizados, sem prejuízo algum à idéia central da Criação.
Vou morrer. E só agora, quando completo 32 anos, vejo que faço 31. Em janeiro de 2008, hei de completar 30. Nesse ritmo, em 2045 volto a sonhar.
Vou morrer. Vou me deitar no colchão macio da Verdade e dormir profundamente. E vou sonhar com a nova Vida que me espera, e me preparar para minha segunda morte, para acordar para uma nova vida, e me preparar para minha terceira morte, para acordar para uma nova vida, e me preparar para minha quarta morte, para acordar para uma nova vida, e me preparar para...
Vou morrer. Aos poucos, a idéia da morte vai se acomodando. Aos poucos, saber-me efêmero vai se transformando numa constatação indolor. Aos poucos, por uma certa aproximação – cumplicidade ou co-gestão – com o processo criativo universal (ok, chamai-o de Deus), meio que vou me convencendo de que também eu estou submetido à grande regra: fenecer.
Vou morrer. Olho para trás e vejo que as múltiplas, diversas e complexas perguntas feitas a mim mesmo e ao mundo ao meu redor começam a ser respondidas, não pela leitura dos filósofos, não pelo estudo da cultura oriental e de sua religião, não pela meditação, mas por mim mesmo, inconscientemente. Aos poucos, ao invés de obter respostas, subtraio perguntas. Aos poucos, toda a inquietação se transforma numa confluência, coesão com o todo. Aos poucos, a Verdade, que busquei, me busca.
Aos poucos, a resposta, tantas vezes escorregadia, enrosca-se em meu pescoço, cachecol em linha de tricô.
Vou morrer. E me irmano com meus ídolos. Dentro em breve – para a história, o que são 100 anos? – dentro em breve estarei com Ele. Mas Ele já está comigo. Dentro em breve, deixo de ser protagonista, exclusivista, egoísta, narcisista, para ser tudo, todos, total. Dentro em breve, esta sensação de agora – nirvana é a sensação – vai consumir-me todo, vai envolver-me todo, e todo me fará viver.
Vou morrer. E só agora, quando deixo de lado toda a seriedade, é que vejo o quanto essa brincadeira é séria. Só agora, pleno, posso revoltar-me, encolerizar-me, reivindicar, gritar, humanizando-me, emocionando-me, permitindo-me, ignorando-me. Só agora, “onde vês eu não vislumbro razão”.
Vou morrer. E já formulo – data vênia, Senhor Deus – uma revisão no modelo operacional em uso no universo. Algumas leis universais merecem ajustes, adendos, emendas. Talvez burocratize um pouco, mas alguns ritos podem ser sistematizados, sem prejuízo algum à idéia central da Criação.
Vou morrer. E só agora, quando completo 32 anos, vejo que faço 31. Em janeiro de 2008, hei de completar 30. Nesse ritmo, em 2045 volto a sonhar.
Vou morrer. Vou me deitar no colchão macio da Verdade e dormir profundamente. E vou sonhar com a nova Vida que me espera, e me preparar para minha segunda morte, para acordar para uma nova vida, e me preparar para minha terceira morte, para acordar para uma nova vida, e me preparar para minha quarta morte, para acordar para uma nova vida, e me preparar para...
quinta-feira, 15 de maio de 2008
Bob Marley - Is this love
Seu verdadeiro nome era Robert Nesta Marley. Divulgou o reggae jamaicano no Ocidente sem fazer concessões à música comercial. Suas gravações, iniciadas em 1961, caracterizavam-se pelo ritmo da música e pela crítica social, que falava da repressão aos negros, sobretudo na Jamaica. Seu primeiro sucesso internacional, com a banda The Wailers, em 1975, foi No, Woman no Cry. Seguiram-se outros como I Shot the Sheriff, famosa pela interpretação de Eric Clapton, e o combativo Get up, Stand up. Músico carismático e praticante do culto rastafári, foi aclamado em seus concertos na "Babilônia", apelido dado à Europa e aos Estados Unidos, civilizações cujo destino, segundo ele, seria um ocaso definitivo. As gravações desses concertos estão no álbum Babylon by the Bus (1978).
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