quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Sobre a "recriação" da América

Já lhe ocorreu de se perguntar o que Napoleão teria pensado das periferias?

Como Talleyrand teria administrado a crise do Paquistão? Provavelmente não. O passado está morto e enterrado. Mas, para contrariar está noção, basta aos franceses atravessarem o Atlântico. Aqui, o passado está presente. Os americanos estão questionando o seu passado. Como fariam os Pais fundadores hoje? "Será que eles buscariam disseminar a democracia pelo mundo afora"? "Será que eles apregoariam o criacionismo"? "Se mostrariam favoráveis à pena de morte"?

Há alguns anos, os americanos vêm sendo tomados de fervor pelos seus fundadores. "As pessoas acabam chegando à conclusão de que, se existe alguém que deveria saber de que maneira os Estados Unidos deveriam funcionar, só poderia ser um deles", explica o historiador conservador Richard Brookhiser, que acaba de publicar um livro intitulado "What Would The Founders Do?" ("O que fariam os fundadores?"), no qual ele tenta responder às perguntas acima mencionadas e a outras perfeitamente incongruentes. Nos últimos meses, foram publicadas várias dezenas de livros a respeito dos heróis da Independência. Em sua maioria, eles são bem-sucedidos nas livrarias. Neles podem ser encontrados os questionamentos do final do século 18 e a sua repercussão no debate atual: a religião e o Estado, o poder executivo e seus limites. As primeiras leis de exceção datam de 1798, duzentos anos antes do Patriot Act. Na época, os inimigos estrangeiros eram os franceses (o "freedom fighter" marquês de La Fayette já havia retornado a Paris e ainda não havia voltado para a sua turnê triunfal de 1824).

Até recentemente, os fundadores não passavam de estátuas gravadas no mármore. Nós os redescobrimos como seres mortais, vingativos, ambiciosos. Durante a campanha para a eleição de 1800, Jefferson financiava por baixo dos panos panfletos caluniosos contra os seus adversários. Até mesmo a "ovelha negra" Aaron Burr foi objeto de duas biografias. Burr foi um vice-presidente de choque. Em 1804, ele assassinou o antigo ministro das finanças, Alexander Hamilton, num duelo.

Aquela foi uma época propícia para as intrigas e para a fundação dos partidos. Os comentaristas de hoje estão verdes de inveja. Como fizeram os fundadores, numa época em que a polarização era tão marcada, para conseguirem implantar instituições inéditas, ao passo que atualmente o 110º Congresso eleito nem sequer consegue votar a reforma do sistema de seguro de saúde?

Alexander Hamilton, um gênio das finanças, era o "fundador esquecido". Os anos Bush o reabilitaram. Enquanto [Thomas] Jefferson sonhava com a agricultura, Hamilton previu o advento de uma potência industrial e bancária, com um governo forte. Ele tornou-se para a direita aquilo que Jefferson é para os democratas: "O pai da América moderna". Os "hamiltonianos" - entre os quais David Brooks, do "New York Times" - são favoráveis às leis do mercado, mas eles consideram que o governo deve fornecer aos indivíduos os meios para nele se integrarem. São os novos republicanos.

Num país que se mostra tão apaixonado por tudo o que é imediato, este retorno ao passado revela ser bastante preocupante: o que vem a ser ao certo este questionamento repentino? Será um sinal de declínio? De envelhecimento? Talvez seja, sobretudo, um efeito da efervescência atual. Abalados pelos anos Bush, os americanos estão à procura de respostas, da mesma forma que eles andam procurando a si mesmos. Eles estão retornando às origens, assim como costumam fazer aqueles que não sabem mais ao certo quem eles são. Chegou a hora da recriação.

O "revival" dos Pais fundadores não escapou da atual campanha eleitoral. O que acontece quando alguém liga a sua televisão em Des Moines, no Iowa? Eis Mike Huckabee, o populista batista (e baixista), que afirma que os fundadores eram "pro-life", ou seja, contra o aborto. Não será isso que Jefferson "quis dizer", indaga canhestramente o pastor, "quando ele escreveu que 'todos os homens foram criados iguais'"? Os conservadores estão tentando ancorar a sua religião na Fundação. Não sem sucesso: 55% dos americanos acreditam que a Constituição de 1787 instaurou uma "nação cristã". O que é inexato. Deus não figura no texto. "Os fundadores teriam considerado a religiosidade da nossa vida política moderna absolutamente odiosa", afirmou no final de dezembro de 2007 o cronista David Ignatius.

Em graus diversos, os candidatos estão propondo mudar o "sistema". O republicano Ron Paul, que se tornou aos 71 anos a coqueluche dos jovens radicais, quer abolir o Federal Reserve( o banco central americano). Um debate que lembra tanto 1790! Jefferson era contra a criação do banco central. Hamilton era a favor. O debate, segundo dizem, teria chegado a uma conclusão durante um jantar na casa de Jefferson. Os virginianos aceitaram o banco e obtiveram como contrapartida a sede do governo (e foi assim que a capital acabou sendo instalada nas margens do rio Potomac).

Para o historiador Joseph Ellis, autor do livro recém publicado "American Creation", os americanos têm dificuldades para se conformarem em não obter resposta alguma dos seus heróis. Eles não gostam da idéia de que "o passado seja um mundo perdido para sempre". Ele mesmo foi entrevistado em dezembro pelo "Washington Post": "O que George Washington teria pensado do Iraque?". Ellis optou pela honestidade: "Ele nem sequer teria encontrado o Iraque num mapa".

E em relação às primárias? O que os fundadores teriam pensado a respeito? O que teriam dito desta mistura de promessas revolucionárias, de pesquisas de opinião em todas as direções, de guitarra elétrica e de patrocinadores distribuindo milhões? "Eles teriam considerado qualquer um daqueles que buscam sucesso em nosso circo eleitoral contemporâneo como um palhaço indigno de ser eleito", afirma Joseph Ellis. Muitos são aqueles que apostariam o contrário. Debates, golpes baixos, excessos de exposição na mídia: para estes, os fundadores teriam simplesmente a-do-ra-do...

CONHEÇA OS NOMES CITADOS

Napoleão (1769 - 1821): Assumiu o poder na França com um golpe (conhecido como 18 Brumário) em 1799, encerrando o período revolucionário da Revolução Francesa

Talleyrand (1754 - 1838): Político e diplomata francês, ocupou altos cargos durante o governo de Napoleão e a restauração da monarquia dos Bourbons na França

La Fayette (1757 - 1834): Marquês francês que participou da Guerra de Independência dos EUA

Thomas Jefferson (1743 - 1826): Foi o terceiro presidente dos EUA (1801 - 1809). É considerado um estadista e um iluminista.

Aaron Burr (1756 - 1836): Militar e político, foi vice-presidente dos EUA durante o mandato de Thomas Jefferson

Alexander Hamilton (1755 (?) - 1804): Foi o primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos da América; considerado uma das principais influências na formação do capitalismo americano

George Washington (1732 - 1799): É conhecido com o "Pai dos Estados Unidos", foi o primeiro presidente do país (1789 - 1797)

Fonte: Le Monde. Texto: Corine Lesnes
Tradução: Jean-Yves de Neufville

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