quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Cê vê tudo ao contrário

*Edson Lopes Cardoso
Na canção “O Herói”, do disco Cê, Caetano Veloso retoma o principal argumento do manifesto contra as cotas, que leva também sua assinatura. O argumento quer nos convencer de que por imitação de outra realidade (o comparante é sempre os Estados Unidos), os negros brasileiros dedicam-se a estimular e promover o ódio racial.O argumento não é original, nem na canção nem no manifesto, e apenas atualiza velhos estigmas que nos acompanham desde tempos coloniais: raça inferior, intelectual e moralmente, criminosos em potencial e avessos ao progresso e à civilização.
A um só tempo, os adversários das políticas públicas voltadas para a população negra declaram seu “horror” às desigualdades e nos acusam de cometer um “equívoco elementar”: a importação arbitrária de traços muito particulares dos EUA. E, por esta via, da importação inadequada de singularidades repulsivas, estaríamos insuflando o ódio racial numa sociedade, como disse o ministro Gil em sua posse em 2003, “de caráter essencialmente mestiço e sincrético”.Na letra da canção “O Herói”, a primeira opção do favelado, o caminho inicial que ele descortina é “fomentar aqui o ódio racial/a separação nítida das raças”.
Em sua odi(o)sséia, nosso herói mulato quer ser tudo o que ele não é: “quero ser negro 100%, americano,/sul-africano, tudo menos o santo/que a brisa do brasil briga e balança” (É preciso fingir aqui que não sabemos ser a favela uma demarcação com rígido recorte racial, certo?).Mas o resultado da autoconstrução odiosa é, finalmente, repudiado pelo nosso herói, que não se reconhece nessa indumentária postiça, que lhe subtraiu a boa índole sincrética, e, numa daquelas metamorfoses dignas de Macunaíma, decide-se em grande êxtase por assumir o peso da tradição ideológica.
Transformado quase em camelo nietzschiano, sai gemendo sua dor, queixando-se a Deus: “eu sou o homem cordial/que vim para instaurar a democracia racial/eu sou o herói/só deus e eu sabemos como dói”.É fundamental não perder de vista que a acusação repetida, que nos atribui o “ódio racial”, se faz contra um pano de fundo do qual se destacam o protesto negro e a luta pelo acesso a recursos públicos e políticas públicas que conduzam à superação das desigualdades raciais. Como encobrir essa orientação conservadora? Vejam bem, trata-se de negar uma afirmação – a da existência do racismo, da opressão racial e de práticas de discriminação racial - , que desnuda os privilégios da cidadania usufruídos pelos brancos.
A negação de Caetano, Kamel e outros só poderia tomar mesmo um caminho: descolar-se do real, a que opõem a sublimação de nossas relações raciais, idealizadas em sua máxima potência de quase delírio, a ocultação ou a distorção de fatos objetivos e a projeção de todo o mal nos Estados Unidos. Estranhamente, porém, nosso ódio produz quase que exclusivamente vítimas negras, aos borbotões. Na polêmica sobre o “apartheid” do carnaval baiano, levantada mais uma vez por Carlinhos Brown, Caetano usou os mesmos argumentos presentes na canção “O Herói” para desqualificar as críticas de Brown, associando-as a sugestões de subalternidade intelectual e desvios patológicos. O debate sobre segregação é recorrente no carnaval baiano, instigado por camarotes, cordas e muita porrada nos negros. Os blocos afros e afoxés são também marginais nos circuitos.
Quem brilha nos horários de visibilidade televisiva e grande afluência de público são, como se sabe, aqueles aquinhoados, ano após ano, com os convênios da Bahiatursa, sem que se esclareçam os critérios estabelecidos para premiar entidades carnavalescas inadimplentes. Ao longo dos últimos anos não foram poucas as auditorias de técnicos do Tribunal de Contas do Estado engavetadas por conselheiros subservientes. Os privilégios racistas, profundamente enraizados em nossa sociedade, abarcam as instituições, as estruturas de saber e poder, e o carnaval não fica de fora (ver Immanuel Wallerstein. O albatroz racista, p. 37).
Na canção “O Estrangeiro”, do disco de 1989, Caetano escreveu os versos: “O macho adulto branco sempre no comando/(...)Riscar os índios, nada esperar dos pretos”. Não esperar e não aceitar sequer que possam expressar sua própria experiência, como o fez Carlinhos Brown e o fizeram muitos representantes de blocos e entidades do Movimento Negro na Bahia. Uma experiência que afeta a vida de milhões de pessoas, e não só na Bahia, de modo essencialmente dilacerador. E uma experiência que pode ser compartilhada sem demérito. Por que não podemos aprender com Spike Lee? A proibição de que os negros brasileiros possam se debruçar sobre a realidade da Diáspora, sob o pretexto de uma singularidade extrema de nossas relações raciais, soa ridícula mas não inocente.
Caetano Veloso esteve preso em um subúrbio do Rio de Janeiro, durante a ditadura militar. E fez em seu livro “Vereda Tropical” um relato da experiência da tortura de presos comuns que seus ouvidos testemunharam (“gritos horrendos”). “De fato, desde essa experiência na PE da Vila Militar, passei a ter uma idéia diferente da sociedade brasileira, a ter uma medida da exclusão dos pobres e dos descendentes de africanos que a mera estatística nunca me daria.” (p.379)Os tais “gritos horrendos” configuram uma experiência real, autêntica, legítima – dos ouvidos e da sensibilidade de Caetano. Mas não pode ser utilizada pelos negros, que a vivenciam no pau-de-arara, como referência concreta para definir seu real “status” na sociedade brasileira. Nossas experiências servem aos outros, mas não servem a nós.
*Edson Lopes Cardoso é coordenador editorial da Revista Irohin
edsoncardoso@irohin.org.br

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