segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

O perfil sócio-racial da relenta – uma leitura de conceitos

Minha infância no bairro Bateias (hoje Brasil), em Vitória da Conquista, foi marcada por acontecimentos q’inda hoje me povoam a alma de dores e espantos, alegrias e contemplações. Inda hoje predominam em minha mente lembranças de um vocabulário tipicamente bateiense e que eu jamais encontrei em qualquer outro lugar. Um vocabulário rico, demasiado rico.
Havia termos que, confesso, nunca entendi, pois que muito cedo deixei as Bateias para outro trecho da cidade. Mas um vocábulo, em especial, veio-me à mente hoje, quando indagava a mim mesmo sobre as maneiras por meio das quais a sociedade estabelece diferenças e determina fronteiras sociais para-além dos aspectos meramente econômicos. Paulinho da Viola tem um belo samba chamado Chico Brito, que eu ouvia quando fustiguei minha imaginação.

Detive-me nessas investigações filosóficas quando, enfim, atentei para o fato de que havia um termo, em especial, que, na minha infância, era utilizado para identificar um tipo especial de sujeito (a): relento. Relento (a) era todo aquele e toda aquela que, socialmente controvertido, assumia um comportamento que não era exatamente o modelo ordeiro que os pais tanto solicitam de seus filhos. Quem recorrer ao Aurélio saberá que relento é um termo que diz respeito às más condições atmosféricas.

Vitória da Conquista é uma cidade nordestina, porém, fria; seus habitantes costumam chamar de relentas as noites de neblina. Diz-se, muito comumente: “Menino, sai do relento”. Numa sociedade machista como a nossa, é evidente que o termo tem maior força quando aplicado à mulher, uma vez que ao homem o termo relento quase sinônimo. Sair à noite, sem compromisso, aprontando, é, em nossa sociedade, uma ação naturalmente masculina e aceita. À mulher, o recato.

Daí por que o termo ganhava força quando indicava uma figura feminina. Lembro bem de meus pais intervindo junto às minhas irmãs, fazendo uso do termo relenta quase que para amedrontá-las. “Não quero ver vocês mais com aquelas relentas”; “Saiam de perto daquelas relentas”. Colar sua imagem à de uma relenta era carimbar o passaporte para o naufrágio social.

Mas algo hoje me chamou atenção: relenta era um termo aplicado quase que exclusivamente às meninas negras; para mim, criança – e hoje esta verdade parece evidente –, relenta e negra eram sinônimos. Jane, filha de uma vizinha nossa – Dona Anésia – era uma menina como outra qualquer; criança cujos pés pisavam a areia e que possuía as qualidades todas próprias de alguém pertencente a uma determinada classe social. Jane era uma criança negra e, portanto, o seu comportamento era de uma relenta, condição que atingia não apenas sua dignidade mas a de sua família como um todo. Tais práticas verbais tem poderes elásticos. O mesmo comportamento, a mesma ação, o mesmo acinzentado da pele, quando percebidos em meninas de classe média – que cosia engraçada – não mereciam tais interpretações.

Embora não pretenda utilizar neste espaço de linguajar academicista para explicar o que penso, devo dizer que vou me policiar para identificar aquelas práticas verbas que mais diretamente nos atinge para estabelecer uma leitura mais atenta dessas ações sociais que, de tão naturais, vão criando um ambiente de discriminações e de discursos preconceituosos.

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