Há autores cuja marca autoral (desculpem a redundância) é tão evidente que tudo em torno soa “autoral”. Em Djavan, a música é autoral, a letra é autoral, o canto é autoral, isso é evidente. Mas autorais também são os arranjos.
Autoral também é a banda, sempre a mesma em todas as faixas, íntima do autor a não mais poder e não só por conter dois de seus filhos, o guitarrista Max e o baterista João Viana, mas por acompanhá-lo show a show há quase uma década. A banda, quase que como uma extensão do violão e sobretudo das idéias musicais de Djavan, é básica no baixo de Sérgio Carvalho, no piano de Renato Fonseca e colorida pelo naipe de sopros formado por alguns dos melhores solistas do país, o niteroiense Marcelo Martins (saxofone tenor e flauta) e os paulistas Walmir Gil (trompetes) e François Lima (trombone). O violão e a guitarra de Djavan são onipresentes, mas não mais djavânicos que o resto da banda. O som é único, puro Djavan, burilado no dia-a-dia e no estúdio profissional que o autor montou e mantém em casa. Ou seja, até o estúdio é autoral.
“Matizes”, décimo oitavo disco de Djavan, é, como se vê, o mais radicalmente autoral de todos e não apenas por conter exclusivamente 12 novas canções autorais. Até a gravadora é autoral, a Luanda Records, em seu terceiro lançamento. E mesmo a capa, quadrados à Mondrian, que vão sutilmente mudando de cor, busca revelar a intenção (e desculpem a redundância de novo) autoral do autor: revelar uma única expressão musical, tão característica, em seus diversos “matizes”.
Djavan é autor ambicioso desde que se lançou autor em 1976 a bordo de mega-sucessos como “Fato consumado” e “Flor-de-lís”, sambas diferentões que embasbacaram o meio musical brasileiro, e já com larga experiência adquirida em boates cariocas e nos estúdios onde emprestava a voz para temas de novela. Agora, mais do que mais um disco autoral, Djavan decanta em “Matizes” as várias tonalidades de sua vasta obra. Trata-se de um painel.
“Joaninha”, por radicalmente djavânica, é a canção ideal para se começar tal painel autoral. É um “instant classic”, canção típica do autor de “Açaí” e “Oceano”: harmonia complexa, melodia original, sonoridade estranha (que vai do clima de uma balada romântica às curvas angulosas de uma canção mourisca, do naipe de sopros jazzístico à guitarra de rock clássico, tudo cheio de variações rítmicas) de resultado misterioso e encantador. A letra, uma sofisticada reflexão pessoal, uma parada para pensar, é composta de imagens poéticas tão típicas de Djavan (e que somente ele parece conseguir fazer), repleta de metáforas cromáticas e inspiradas na natureza: “Bem quando a luz do cacto/Reflete ao sol altivo/A chuva rompe o pacto/Inundando a tarde quente/E o prazer que sente a joaninha/Quando anda pela flor/Ganha um quê de sacrifício e dor”.
No painel da criatividade de Djavan não poderia faltar o samba, matriz musical de qualquer autor brasileiro que se preze. E aí há uma das melhores notícias para os fãs do compositor: Djavan voltou a se dedicar ao samba. A própria faixa-título, “Matizes”, é uma daquelas incursões de Djavan pelo gênero-mãe da música urbana brasileira, um samba ao mesmo tempo delicioso, comunicativo, fácil de gostar mas altamente pessoal. A harmonia é levada pela guitarra de Max Viana emulando um cavaquinho. Aquela parte em que ele canta, “Ficamos sós/Perdi a voz /Você sorriu/Foi quando eu ri também/Pensei que morreria”, vai fazer com que esse samba entre nas antologias e no repertório dos jovens grupos de samba espalhados pelo país.
“Delírio dos mortais” é outro samba, um samba-exaltação ao Rio, um samba de malandro feito à medida para as gafieiras da cidade. O autor alagoano presta pela primeira vez um tributo à cidade que escolheu para viver. Mas não poderia deixar de imprimir sua marca... autoral: “Pra delírio dos mortais/Pedras monumentais/Combinaram aqui/Um encontro colossal”.
É samba também “Imposto”, mas um tipo de samba novo, inventando aqui por Djavan: a “bossa nova de protesto”. E o autor protesta, de forma clara, direta, contra a carga fiscal abusiva, contra a corrupção, contra os péssimos serviços prestados pelo Estado, pela impotência do cidadão comum.
Já “Azedo e amargo” é também um samba, só que meio disfarçado, de harmonia rica, melodia típica e cheio de quebradas rítmicas. Como “Joaninha”, outro “instant classic” tipo “Oceano”. Trata-se de uma declaração de amor a uma moça agridoce, que “Se ela fosse planta seria/A comigo-ninguém-pode”.
Mas nem só de sambas de vários matizes vive o “Matizes” de Djavan. Há desde um misto de bolero e son cubano bem latino e dançante como “Louça fina” a um típico “blues do Djavan” (como certa vez definiu Caetano Veloso), “Desandou”. A balada “Por uma vida em paz” também tem clima “jazzy”, próximo da grande canção americana, para falar de questões universais na belíssima letra: “Não sei bem o que dizer /Sobre o mal na terra:/Acho que o amor hesitou”.
Há também aquele tipo de canção tipicamente djavânicas que as rádios e as platéias dificilmente resistem. E é impressionante como ele as compõem aos borbotões. É o caso de “Fera”, de “Pedra” e de “Adorava me ver como seu”. Este trio de canções típicas mostra a síntese musical achada por Djavan, mostra como a banda está afiada e traduz o seu universo autoral, e mostra como ele desenvolveu um discurso musical e amoroso próprio. Senão, vejam a letra de “Pedra”: “Amor, me perco em lágrimas/Não mais a vi, desde abril, fui pro mar/E você lá deitada na pedra/Que inveja dessa pedra”.
Dos sambas ao blues, das baladas aos boleros, de canções inventivas (como a bossa nova de protesto) às canções típicas, “Matizes” matiza as tonalidades de uma obra em plena maturidade. Djavan é um artista que achou sua expressão mais pura. E ela está aqui.
Hugo Sukman
domingo, 16 de dezembro de 2007
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